Apresentação

Blogue sobre as actividades da Galeria Quadrum no período 1973-1995, sob direcção da sua fundadora e directora, Dulce d'Agro. A reconhecida importância da Quadrum no panorama artístico português serve de mote e justifica o projecto de constituir um corpo documental "paralelo" à inexistência de um Arquivo da Galeria. A constituição de qualquer arquivo é uma das mais poderosas formas de elaboração do discurso (M. de Certeau). Correlativamente, a sua inexistência também o é: a ausência de um Arquivo de facto da Quadrum é, a vários títulos, significativa. Desde logo por abrir campo a todo o tipo de especulações, mais ou menos verídicas, mais ou menos mitológicas, sobre o lugar da Quadrum no tecido institucional artístico português; mas também por revelar as insuficiências desse mesmo tecido institucional, frágil o bastante pela dificuldade em cuidar das suas próprias heranças e pela incapacidade de projectá-las no presente. Numa altura em que o assunto "arquivo" alcança um protagonismo sem precedentes no contexto das práticas artísticas e curatoriais, Quadrum Arquivo Paralelo configura-se do ponto de vista da investigação historiográfica e teórica, tornando visível o momento fundador do trabalho de pesquisa: a recolha das fontes. O objectivo primeiro de Quadrum Arquivo Paralelo é, então, o de criar uma base estável (ainda que imaterial) para a reunião de documentos que possibilitem uma visão mais alargada e aprofundada das actividades da Galeria no decurso do período considerado.


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Quadrum Arquivo Paralelo tem origem no projecto curatorial desenvolvido por Catarina Rosendo para a Galeria Quadrum, a convite de João Mourão, responsável pela Divisão de Galerias e Ateliês da Câmara Municipal de Lisboa, entidade que assumiu a direcção daquele espaço em 2009.

O projecto de curadoria estruturou-se como uma reflexão sobre a Galeria Quadrum no contexto do tecido institucional português e seguiu duas vias de concretização: numa primeira instância, através do convite endereçado à artista Alexandra do Carmo para desenvolver um projecto artístico a apresentar no espaço da Galeria, e que tomou a forma da exposição “Alexandra do Carmo. «Tudo foi captado (mesmo os movimentos do cabrito)»”, patente entre 24 de Setembro de 2011 e 22 de Janeiro de 2012; depois, pelo convite à curadora e historiadora da arte Lígia Afonso para a definição de actividades paralelas à exposição que, partindo dos pressupostos do projecto curatorial, se gerasse num programa autoral com identidade própria, o que deu origem a um “Programa Colateral” capaz de se estender para lá dos limites físicos e cronológicos da exposição em si.

A oportunidade de reflectir sobre o lugar de relevo ocupado pela Galeria Quadrum no tecido institucional português a partir do seu próprio espaço físico serviu de pretexto para definir a proposta curatorial. Procurou-se, por essa via, ensaiar um balanço entre o passado e o presente da Quadrum, sobretudo ao nível das suas representações e dos discursos (institucionais, artísticos, etc.) a elas associados. Isolaram-se, no decurso da programação levada a cabo por Dulce d’Agro, algumas questões fundamentais para o sucesso da galeria, sobretudo no período até meados da década de 1980: o facto de ser uma das raras galerias comerciais activas no período posterior à revolução de 1974; a regularidade com que insistiu na apresentação de artistas e de trabalhos de carácter experimental e performativo, rompendo com o ritmo até então esporádico de tais apresentações; as inúmeras acções didácticas levadas a cabo, desde cursos de história da arte, a oficinas de gravura, passando por actividades pedagógicas e lúdicas com crianças; e a presença pioneira e assídua em feiras internacionais que se reverteu, entre outros aspectos, no intercâmbio de artistas entre a Quadrum e várias galerias estrangeiras.

A partir destes dados, delimitou-se a necessidade de os pensar, hoje, a partir de uma rarefacção de materiais documentais sobre a Quadrum, por um lado, e do imenso prestígio que as actividades passadas da galeria hoje granjeiam por entre o público especializado, por outro. Refira-se que ambos os aspectos são complementares entre si, espelhando-se mutuamente num conhecimento fragmentado que permanece fechado, na sua generalidade, nas memórias pessoais de todos quantos passaram pela Quadrum entre as décadas de 1970 e de 1990, em alguma imprensa da época que permanece por trabalhar, e no arquivo da galeria propriamente dito, que passa actualmente por trâmites processuais conducentes à sua disponibilização ao púbico. Quer isto dizer que, perante a ameaça de desaparecimento de testemunhos (materiais, orais, etc.), a Quadrum tem sido atravessada, nos últimos anos, pelo perigo de o conhecimento sobre as suas actividades resvalar para a sedimentação mítica e celebratória da sua realidade, com os consequentes efeitos de desfocamento sobre, mais do que as interpretações e as análises, a mera factualidade associada ao lugar e ao que lá aconteceu.

O projecto artístico desenvolvido por Alexandra do Carmo e a programação paralela trabalhada por Lígia Afonso desenvolveram e ampliaram, cada um a seu modo, as diversas questões enunciadas e implicadas na ideia de pensar a herança deixada pela Galeria Quadrum. Alexandra do Carmo, na elaboração da obra “Tudo foi captado (mesmo os movimentos do cabrito)”, procedeu a uma recolha, não exaustiva, de testemunhos de pessoas que passaram pela Galeria Quadrum durante os anos de 1973 a 1995, trabalhando memórias e o seu poder de representatividade hoje. Lígia Afonso definiu um conjunto de actividades conducentes a pensar o que ficou de fora do projecto expositivo e, ao mesmo tempo, a ampliar a proposta de investigação em torno da galeria, de que Quadrum Arquivo Paralelo, em co-autoria com Catarina Rosendo, é exemplar.

Sobre o trabalho desenvolvido por Alexandra do Carmo e sobre Quadrum Arquivo Paralelo deve salientar-se que ambos permitiram uma incursão por materiais habitualmente secundários (porque tidos como pouco fiáveis na sua cientificidade) nas metodologias de investigação: as memórias registadas pela artista definem exemplarmente um caminho possível pelos terrenos da “história oral” e da sua capacidade em contribuir para fornecer modelos interpretativos alternativos a narrativas instituídas; e a pesquisa por diversos arquivos pessoais, que está na base deste blogue, disponibiliza documentação iconográfica que é, em si e para muitos, o primeiro contacto com imagens sobre as exposições, performances e outros eventos que integraram a programação de Dulce d’Agro. Sobre o blogue, um outro dado merece menção: a publicação de uma cronologia expositiva da galeria, inédita, que foi realizada no âmbito de uma pesquisa efectuada por Catarina Rosendo enquanto colaboradora da Quadrum, em finais de 1998, no período em que António Cerveira Pinto iniciava um processo de revitalização da galeria que acabaria por não vingar.

Uma última nota sobre Quadrum Arquivo Paralelo: ele ultrapassa largamente a dimensão e a vocação de um evento expositivo e estende-se bem para lá das concretizações inseridas num programa de actividades paralelas. Assume-se, na realidade, como um projecto de investigação em curso, capaz de gerar conhecimento e de estabelecer parcerias de trabalho institucionais. Que todas estas iniciativas (projecto curatorial, exposição e programa paralelo) tenham tido o seu primeiro momento de visibilidade no próprio dia de desaparecimento de Dulce d’Agro, a grande mentora da Qadrum, é, quanto a nós, significativo de um património cultural sobre o qual se deve começar a trabalhar desde já.