Apresentação

Blogue sobre as actividades da Galeria Quadrum no período 1973-1995, sob direcção da sua fundadora e directora, Dulce d'Agro. A reconhecida importância da Quadrum no panorama artístico português serve de mote e justifica o projecto de constituir um corpo documental "paralelo" à inexistência de um Arquivo da Galeria. A constituição de qualquer arquivo é uma das mais poderosas formas de elaboração do discurso (M. de Certeau). Correlativamente, a sua inexistência também o é: a ausência de um Arquivo de facto da Quadrum é, a vários títulos, significativa. Desde logo por abrir campo a todo o tipo de especulações, mais ou menos verídicas, mais ou menos mitológicas, sobre o lugar da Quadrum no tecido institucional artístico português; mas também por revelar as insuficiências desse mesmo tecido institucional, frágil o bastante pela dificuldade em cuidar das suas próprias heranças e pela incapacidade de projectá-las no presente. Numa altura em que o assunto "arquivo" alcança um protagonismo sem precedentes no contexto das práticas artísticas e curatoriais, Quadrum Arquivo Paralelo configura-se do ponto de vista da investigação historiográfica e teórica, tornando visível o momento fundador do trabalho de pesquisa: a recolha das fontes. O objectivo primeiro de Quadrum Arquivo Paralelo é, então, o de criar uma base estável (ainda que imaterial) para a reunião de documentos que possibilitem uma visão mais alargada e aprofundada das actividades da Galeria no decurso do período considerado.


Alexandra do Carmo

«TUDO FOI CAPTADO (MESMO OS MOVIMENTOS DO CABRITO)»
Exposição patente na Galeria Quadrum entre 24 de Setembro de 2011 e 22 de Janeiro de 2012



Imagens dos desenhos aqui                                                 Foto: Pedro Tropa / Teresa Santos

Audio disponível aqui                                                          Foto: Pedro Tropa / Teresa Santos



Representações de uma comunidade de experiência
Catarina Rosendo
in Alexandra do Carmo, “Tudo foi captado (mesmo os movimentos do cabrito)”, Lisboa, Galeria Quadrum, 2011.


Que significam hoje as memórias daqueles que passaram pela Galeria Quadrum ao longo dos seus vinte e três anos de existência? Como trabalhar as condições prévias que envolvem a ideia “Galeria Quadrum”? Ignorá-las e construir algo através da neutralização operativa do seu passado e da sua história ou, pelo contrário, tomar o contexto como matéria e incorporá-lo no processo de criação de um trabalho a ser aí apresentado? Alexandra do Carmo optou pela última hipótese, dado que o seu projecto se elabora justamente a partir do levantamento de memórias associadas ao lugar. No entanto, mais do que como, a primeira pergunta talvez deva ser porquê, e uma das primeiras respostas é esta: quando assumiu a direcção da Quadrum, em 2009, a Câmara Municipal de Lisboa – sua proprietária de sempre – decidiu revitalizá-la mantendo quer o seu programa funcional quer o nome pelo qual ficou conhecida. Ambos, note-se, definidos na origem não pelo Município, mas sim por Dulce d’Agro, a artista menor que se transformou numa das mais importantes galeristas do país quando, em 1973, propôs à Câmara utilizar o (primeiramente concebido como) restaurante de apoio ao conjunto dos Coruchéus para aí realizar exposições de «arte moderna». A condição da Galeria Quadrum enquanto espaço expositivo dos mais investidos de significados no panorama nacional, ainda bem arreigados nas memórias de várias gerações de artistas, críticos, curadores, ou historiadores, parece pois ser um dado incontornável tanto na intencional revalorização (neste sentido, quase patrimonial) preconizada pela nova gestão municipal, como na capacidade de atracção que o “assunto” Quadrum é capaz de exercer hoje sobre uma nova geração de artistas e investigadores.
Tudo isto vem a propósito do interesse que Alexandra do Carmo tem vindo a manifestar pelos modos através dos quais se pode construir uma comunidade de experiência entre os artistas e o público, entendido este como o que se cruza intencionalmente com a arte – caso de The Steamshop (or the painter’s studio) ou de A willow (or without Godot), ambos de 2006 – ou casualmente – como em Office/Commercial, de 2009. Os meios empregues no projecto agora apresentado na Quadrum são comuns a vários outros seus trabalhos: uma investigação de campo que procura auscultar uma situação previamente eleita e que se suporta em registos audiovisuais (neste caso apenas áudio) de carácter documental; uma prática de desenho, de carácter intensivo e serial, que se baseia nos dados entretanto recolhidos e trabalhados; e uma hiper-consciência (auto-responsabilizadora) do artista enquanto espécie de “deslocador” dos modos de percepção da situação inicialmente escolhida como matriz condutora de todo o projecto.
Tudo foi captado (mesmo os movimentos do cabrito) desenvolve-se, então, em dois momentos distintos: uma gravação sonora que regista depoimentos recolhidos por Alexandra do Carmo a autores e ou espectadores das actividades promovidas pela Quadrum sob a direcção de Dulce d’Agro, que pode ser escutada na pequena antecâmara de acesso à antiga sala do acervo da Galeria, agora transformada em sala de estar para o efeito; e uma série de desenhos, realizados pela artista a partir dos elementos visuais e das ideias presentes nos depoimentos, afixados directamente e em sequência linear na parede poente do espaço expositivo principal. A aparência de todo o recinto é a de vazio: os desenhos estão dispostos na parede que menos capta a atenção do espectador quando se acede à galeria, e os depoimentos apenas podem ser escutados através de auriculares instalados na sala posterior preparada para o efeito. Os depoimentos registam as impressões de várias pessoas sobre obras, performances ou outros acontecimentos que tenham marcado presença na Quadrum, sobretudo ao longo das décadas de 1970 e de 1980. Do que nos é dado ouvir, realçam-se diferentes experiências perceptivas. Por exemplo, a visualidade de algumas descrições: «[...] ela terminava por, ao longo do seu braço, cravar espinhos de rosas, definindo por assim dizer uma linha que ia desde o ombro, ou praticamente do ombro, até ao pulso.» Ou as reacções do público: «[...] de repente cria-se um estado de tensão na audiência...»; «[...] tudo foi captado, o olhar das pessoas, o interrogar, a forma como elas falavam sobre aquilo que estavam a ver [...]». Ou a sensação de novidade: «[...] era uma instalação e eu ainda não sabia que isso existia»; «[...] estar finalmente a ver uma pintura em dimensões grandes... foi das primeiras vezes que eu vi artistas meus conterrâneos a fazerem as dimensões que eu via no estrangeiro». Ou a consciência do corpo como medida de aferição: «[...] eles definiam um desenho abstracto no espaço, que iria um braço e tal para cima do olhar do espectador e outro braço e tal para baixo do olhar do espectador e abrangia dois braços abertos com grande largueza, portanto quem chegasse ao pé muito simplesmente sentia que fazia parte». O tom dos vários depoimentos é enunciativo e explicativo e, ao editar o material sonoro, Alexandra do Carmo procurou que as diferentes vozes se sucedessem numa cadência de pequenas narrativas separadas por silêncios espaçosos o suficiente para se manterem autonomizadas umas das outras e, ao mesmo tempo, interligadas no fio condutor do universo visual e das sensações que descrevem. Por sua vez, os desenhos apresentam, na parte inferior, frases impressas retiradas dos depoimentos e seleccionadas pela artista por condensarem, a seu ver, as ideias centrais desenvolvidas por cada um dos entrevistados. O resto do papel (exceptuando as raras ocasiões em que está vazio) é ocupado por desenhos elaborados a lápis (de grafite e cor) com uma leveza de traço que roça a invisibilidade, produzindo representações visuais de elementos (ideias ou objectos) retirados das narrativas e localizados, no desenho, nos olhos de figuras humanas que encaram directamente o espectador que, hoje, se posiciona fisicamente no espaço da Galeria Quadrum e observa os desenhos.
Existem quatro momentos marcantes, transformadores dos dados iniciais eleitos pela artista, ao longo deste trabalho que parte de uma dada realidade (os acontecimentos passados da Quadrum) para uma construção simbólica que retém as características de adensamento subjectivo presentes não apenas nas memórias em si mesmas como também no seu processo de comunicação: em primeiro lugar, a gravação sonora dos depoimentos, com o seu carácter documental de registo o mais neutro possível, não obstante a artista ter solicitado aos entrevistados lembranças específicas de obras concretas; depois, a selecção de excertos para a peça áudio, procurando maximizar a componente comunicativa das experiências vividas mas abstractizando ao limite os referentes mais imediatos (cada obra mencionada e o seu respectivo autor surgem-nos, na prática, “sem título” e “anónimo”); a seguir, um segundo afinamento selectivo que depurou os excertos em ideias, emoções, ou objectos que surgem nos desenhos através de frases impressas; finalmente, a recriação e presentificação visual desses elementos através do desenho. Apesar de a série de desenhos se suceder no tempo à gravação sonora, no espaço expositivo ambas funcionam numa complementaridade circular e reenviam-se uma à outra numa constante transformação dos efeitos narrativos e imagéticos diferentemente explorados pelos códigos de percepção específicos ao som, à escrita e ao desenho, e também pelas suas formas próprias de inter-relacionamento e modos mais ou menos inatos de atenção.
Duas características reforçam esta complementaridade entre os desenhos e o registo sonoro, das quais a mais evidente é a sequência espacial dos desenhos que repete a sucessão temporal da gravação. A outra é a assunção do «erro», como lhe chama Alexandra do Carmo, que surge de forma recorrente no seu trabalho. Neste caso, os diversos erros, explícitos nos desenhos através de linhas interrompidas e rasuradas, perspectivas enviesadas e proporções enganadas, etc., funcionam como prolongamentos do registo oral, com as suas interjeições, hesitações de pensamento, correcções de ideias e repetições de palavras que à artista interessou deixar presentes nas gravações. Até o título deste projecto, Tudo foi captado (mesmo os movimentos do cabrito), pretende deixar clara a margem de erro própria aos processos rememorativos e que extravasa para os desenhos no acto de os fazer. A frase é retirada de um dos depoimentos e o cabrito em questão é na realidade a burra que fez parte da performance Caretos de João Vieira, apresentada com um conjunto de pinturas em 1984. Este engano nunca é clarificado no desenvolvimento da obra, bastando à artista evidenciar a contradição introduzida através de um segundo depoimento que menciona outro animal.
A relevância do erro no trabalho de Alexandra do Carmo prende-se com uma ideia de experimentação directamente vinculada aos processos de comunicação e à imediatez do fazer. Neste caso, como em muitos outros na sua obra, o que está em causa é uma investigação sobre as modalidades (ou, ainda antes destas, sobre a possibilidade) de contacto das experiências artísticas com uma determinada audiência. Não é por acaso, com efeito, que não lhe interessaram as histórias, sempre frequentes quando se evoca o tema da Quadrum, sobre o papel e a personalidade da sua directora, Dulce d’Agro, mas sim as narrativas das experiências vividas por quem participou, assídua ou esporadicamente, nas actividades da galeria e, sobretudo, a possibilidade de transmissão dessas narrativas num lapso temporal que chega a cobrir mais de trinta anos. Um aspecto importante dos depoimentos recolhidos por Alexandra do Carmo é o facto de eles se reportarem a memórias que permaneceram vívidas por via dos seus efeitos de espanto, novidade, choque ou derrisão, todos eles índices do carácter experimental e participativo das propostas artísticas referidas por cada um dos entrevistados, fossem elas uma performance envolvendo sangue (A hot afternoon 3, de Gina Pane, em 1978), a condução do espectador ao interior da obra pela quase total obstrução do espaço de circulação da galeria (Corredor, de Ana Vieira, em 1982), uma pedra rolada pousada no chão (Trajecto dum corpo, de Alberto Carneiro, em 1977), a profanação do espaço da galeria por via da cultura popular (Caretos, de João Vieira, em 1984), ou a alteração das escalas comuns à pintura até então vista em salões portugueses (a exposição de António Sena, em 1975).
Uma das questões que este projecto levanta (e que se relaciona intimamente com os sucessivos reptos que, ao longo dos anos, a artista tem vindo a lançar aos modos de funcionamento da noção – comunitária – de audiência) é o de saber de que modo as opções estéticas de um determinado momento, moldadas como são por representações individuais e institucionais de diversa índole, interagem com outros aspectos de uma dada sociedade na criação do seu património cultural. As estórias captadas por Alexandra do Carmo reportam-se a alguns dos episódios mais intensos vividos pelo público da Quadrum. Cada uma das pequenas narrativas pessoais reflecte, pela contiguidade dos pormenores descritos e dos significados implícitos, um tipo mais abrangente de percepção e recepção da arte que constrói uma consciência partilhada, comunal, das experiências vividas. Entendidas na sua globalidade, as narrativas em causa testemunham uma fundamental alteração nos hábitos visuais introduzidos na época pela programação da galeria, se não tanto por via da sua radicalidade, seguramente pela regularidade. Mais do que contribuir para introduzir a renovação dos meios de produção artística, o estatuto diferenciado da Quadrum configura-se num rompimento com tipologias expositivas e críticas ainda demasiado dependentes, no nosso contexto, da pintura e da (até então quase inexistente) escultura portuguesas. Maria Nobre Franco, que nos anos 1980 viria a dirigir outra das galerias mais consequentes do nosso tecido institucional (a EMI – Valentim de Carvalho), transmite de forma lapidar no seu depoimento aquele que seria porventura o sentimento mais comum entre o público das exposições da Quadrum: «eu não estava habituada a ver uma exposição assim.» Outras galerias procuraram romper com a tradição artística, muito embora de forma mais errática ou, quando mais consistente (caso da Buchholz, dirigida por Rui Mário Gonçalves sensivelmente entre 1965 e 1974), sem beneficiarem da visibilidade em torno da experimentação e dos novos meios que o período pós-revolucionário veio a imprimir no contexto português. Nenhuma outra galeria comercial portuguesa pode ser tão legitimamente recordada como espaço de promoção dos mais diversos experimentalismos, sobretudo no tempo, situado entre o pós-25 de Abril de 1974 e o início da década de 1980, em que surgiam associados a uma ideia de “vanguarda” que era, muito por via de alguns autores que em dado momento surgiram ligados à própria Quadrum (caso de Ernesto de Sousa), um conceito incontornável de aferição valorativa das práticas artísticas. Os depoimentos recolhidos por Alexandra do Carmo permitem entender hoje como um determinado tempo se pensou a si mesmo. Transcendem involuntariamente a experiência individual para construírem, no seu conjunto, uma experiência histórica das mais relevantes do contexto artístico português, expondo a sua estrutura de sentido de modo mais enfático do que uma qualquer “história oficial” da Quadrum (impossibilitada pela inexistência de um arquivo documental acessível à investigação) conseguiria fazer.
Não admira, então, que nenhum entrevistado se tenha referido a obras ligadas à pintura informalista francesa ou à arte cinética que, nos três primeiros anos de existência da galeria, formaram o seu principal eixo programático e expositivo. São memórias que o tempo tornou irrelevantes para a actualidade da Quadrum e, sobretudo, para a criação dos novos modos de ver e de participar nas manifestações artísticas. Ao mesmo tempo, é sintomático que as descrições captadas pela artista se foquem ora em pormenores técnicos muito concretos (a altura de um papel de cenário suspenso, a quantidade de fardos de palha espalhados pelo chão, a extrema liquidez de uma tinta escorrente), ora nas emoções fortes e sensações viscerais causadas por alguns dos trabalhos. Ausente está a ambição, por um lado, de fornecer uma explicação detalhada e acabada das obras que se mencionam e, por outro, de elaboração sobre os significados do visto ou vivido. Esta interiorização da importância da experiência subjectiva, sinal de uma noção mais real do que académica acerca do papel do espectador na construção dos (múltiplos) sentidos das obras em causa, revela, finalmente, um tipo de percepção artística que as propostas expositivas da Quadrum ajudaram, decerto, a criar (ou pelo menos a consolidar) no contexto cultural português.

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A dado momento, Alexandra do Carmo escreve nas suas notas de trabalho: «[uma] galeria que serviu de palco à experimentação»; «esta galeria era quase um ateliê». Estas ideias esclarecem a dimensão experimental das várias actividades decorridas na Quadrum enquanto prolongamento do lugar de ensaio associado ao espaço tradicional do ateliê e enquanto elaboração da obra de arte numa condição de abertura a uma dada audiência, o público da galeria. Tal como a intenção de deixar explícitos os erros nos seus desenhos, também esta noção de ateliê enforma, para Alexandra do Carmo, uma interrogação em torno das práticas artísticas entendidas como zona franca capaz de gerar, mais do que um discurso, um processo de comunicação construído em tempo real, estabelecido entre o artista e o público, em redor das representações simbólicas. Trata-se, como muitas das práticas post-studio têm vindo a evidenciar, de trabalhar no interior de uma dada comunidade, mais do que trabalhar para ela. A elaboração e a instalação do projecto de Alexandra do Carmo são, a este respeito, elucidativas: a obra apresentada agora na Quadrum realiza um trajecto que parte dos locais de trabalho dos entrevistados (onde os depoimentos foram captados) e que «serviram de ateliê temporário» à artista (conforme ela regista nas suas anotações), para chegar ao próprio espaço expositivo a que esses depoimentos se referem, sob a forma de gravações e desenhos, ambos com um nível de rarefacção referencial e objectual que faz com que a galeria surja ocupada como se não houvesse nada para ver, apenas pistas para algo fazer.
É este, justamente, o papel do público que hoje acede à Galeria Quadrum e encontra Tudo foi captado (mesmo os movimentos do cabrito). Referindo-se ao primeiro da série de desenhos que ocupam a sala principal, Alexandra do Carmo escreveu nas suas notas: «começar pelo desenho de uma audiência, poderia ser no teatro». Está aqui aberto o caminho para uma encenação narrativa em que se procura trazer ao público de hoje, que visita uma exposição que se constrói a partir da memória de outras exposições que aí tiveram lugar no passado, a consciência de um determinado modo de ver e de perceber as práticas artísticas tal como elas aconteceram no decurso dos anos mais profícuos da Quadrum. Aqui, em causa, está uma confrontação de dois tempos distintos quanto aos modos de recepção da arte (mais do que ao nível das suas formas de produção): como pode o espectador de hoje entender as experiências da diferença e da novidade vividas por essa audiência que Alexandra do Carmo procurou captar, familiarizado como está com a pesquisa dos meios, a construção discursiva, a desmaterialização, a indistinção disciplinar, os modelos de participação, os questionamentos identitários, etc., que enformam já, de certo modo, o repertório clássico que integra o mais vasto contexto actual de institucionalização da experimentação? Pode tratar-se, em suma, da tentativa de constituição de um novo espectador, historicamente consciente da sua função e, em boa medida, desperto para o facto de tanto os públicos de ontem como os de hoje se manterem largamente circunscritos a uma audiência especializada (quer dizer, detentora de uma determinada cultura visual), não obstante a (relativa) massificação dos consumos no que à arte diz respeito e os esforços das instituições culturais (desde logo através dos serviços educativos dos museus) em alargar o grau de penetração das práticas artísticas nas comunidades em que se inserem. A própria impossibilidade, no decurso da pesquisa conduzida por Alexandra do Carmo, em localizar outras pessoas ligadas às actividades da Quadrum que não artistas, coleccionadores, galeristas e outros profissionais do meio, é eloquente, não só por caracterizar exemplarmente os públicos de então, mas também por sugerir as possibilidades reais de públicos nos dias de hoje.
Os desenhos elaborados pela artista articulam-se neste confronto entre as duas audiências presentes na exposição: a de antes e a actual. Colocando-se no cerne de algumas das questões associadas à transmissão da experiência, os desenhos propõem-se mediar um conjunto de representações desgastadas pelo tempo e às quais a artista imprimiu um segundo nível de erosão, ao fragmentar as memórias dos espectadores originais das actividades da Quadrum em elementos pouco significativos por si só: uma cadeira, um burro, uma pedra. A articulação destes elementos com os textos/legendas que correm por baixo, bem como a sua localização nos olhos dos «personagens» (outra expressão usada pela artista) que fitam o espectador de hoje, operam uma ligação imediata quer com a sua origem (os depoimentos) quer com o seu destino (o público actual). O olhar (uma das representações visuais mais simbolicamente investidas) é mesmo, nas anotações da artista, o «palco» onde esta «passagem no tempo» se clarifica. A artista referencia também o desenho como o lugar para a criação da «ficção» e o texto como abertura à «poesia» (porquanto não lhes interessa ser “ilustração”, mas tão só “sugestão”), marcando a sua intenção em possibilitar uma «nova realidade» aberta ao «diálogo sobre a essência da produção da obra partilhada com o espectador». Através das três temporalidades implicadas neste trabalho (o tempo passado dos acontecimentos, a transmissão dos acontecimentos através das descrições orais e os desenhos construídos a partir dessas descrições), elabora-se um quarto momento, concretizado no decurso da exposição: o do espectador circulando pela galeria, observando os desenhos e escutando os depoimentos. No limite, aquela audiência que Alexandra do Carmo define no primeiro desenho da série, «que poderia ser no teatro» acaba também por se constituir como espectadora do teatro que se desenrola à sua frente, onde o público actual ocupa o espaço da galeria como se de um palco se tratasse. Nesta espécie de teatro épico brechtiano, não se ambiciona menos do que, ainda de acordo com as notas de trabalho da artista, a «criação de um espaço que se dedique a despertar o futuro espectador», exigindo deste um «compromisso permanente» com o próprio artista no acto de experimentar a obra e de consagrar uma comunidade de experiência.